quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Fé Cristã e Conhecimento Científico

A fé cristã é incompatível com o conhecimento científico e as elaborações racionais? É difícil responder objetivamente a esta pergunta devido à variedade de segmentos abrigados pelo que é denominado “fé cristã”. Discutirei de forma sucinta e introdutória aqui alguns princípios relacionados à fé cristã da tradição reformada e sua relação com a ciência. São vários historiadores e sociólogos que discutem as transformações sociais influenciadas pelas convicções religiosas oriundas da Reforma Protestante do Século XVI. Max Weber é referência para grande parte dessas análises. Ele constata um elemento na fé protestante em geral e, especialmente na vertente calvinista, que seria o gerador de todas essas ações transformadoras. É o que ele chama de “ascetismo intramundano”. O que isto significa? Segundo o sociólogo alemão, o protestantismo, em comum com o catolicismo romano e outros segmentos religiosos, nega o mundo. A diferença é que essa negação do mundo, no protestantismo, em vez de sair do mundo, propõe-se a enfrentar o mundo com o propósito de transformá-lo para a glória de Deus. Esse conceito serve para entendermos a ação do protestantismo em diversos campos, inclusive no que diz respeito à investigação científica.
Considerando que o objetivo da ciência é “conhecer a realidade” para promover a felicidade humana, então o cristianismo, do ponto de vista bíblico, reformado, entende que a “ciência é de Deus” e precisa ser desenvolvida. Afinal, nesta perspectiva, Deus criou o homem e um dos aspectos da imagem e semelhança de Deus no homem é a capacidade de conhecer a realidade que o cerca. A “ciência” nesse sentido amplo é inerente à natureza humana. Desde os primeiros anos da sua existência o homem já revela o seu desejo (e necessidade) de conhecer. Aquelas inquietantes perguntas com as quais os pequerruchos transtornam pais e professores servem de exemplo. Deus  detém o conhecimento absoluto e outorgou ao homem, sua imagem e semelhança, uma amostra dessa inteligência. Capacidade de conhecer. É dever do homem, portanto, desenvolver esse potencial em submissão ao Criador. Acomodar-se na ignorância é negligenciar o dom recebido. Esse é um principio bíblico enfatizado pelo cristianismo reformado. Eis a razão da ênfase do protestantismo na educação escolar. São muitas as instituições de ensino, nos diversos níveis, criadas pela igreja protestante para alcançar com a expansão do conhecimento, as sociedades nas quais esse segmento cristão se instalou. No Brasil, são diversas as dissertações de mestrado e teses de doutoramento que estudam práticas educativas, projetos educacionais e a fundação de instituições de ensino por parte dos protestantes que aqui chegaram definitivamente em meados do Século XIX. Desde as chamadas escolas paroquiais, com objetivos relacionados à alfabetização, aos grandes colégios, às escolas para formação de profissionais até às grandes universidades,  nas diversas regiões do país.
A relação entre ciência e fé é complexa e este não seria o espaço adequado (e suficiente) para tratá-lo com o rigor.  Nosso objetivo aqui é apenas sinalizar, estimular a leitura sobre o tema, desmitificando aquela atribuição apressada de obscurantismo à fé cristã. A falsa idéia de que todos os segmentos cristãos, em todos os contextos, evitassem a pesquisa, a investigação, refletindo um receio pela “descoberta da verdade”. O segmento supra-mencionado, firmando-se na convicção de que “toda verdade procede de Deus”, incentiva a sua busca, considerando os princípios éticos extraídos da Bíblia. Conflitos com certas teorias científicas são inevitáveis. Esses conflitos, entretanto, existem até entre as próprias teorias científicas em seu dinâmico e intenso debate. 

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ética Cristã e Desenvolvimento Sustentável

Ética Cristã e Desenvolvimento Sustentável[1]
                                                                    José Normando Gonçalves Meira[2]
O conceito de “desenvolvimento sustentável” é relativamente novo. Surgiu a partir das reflexões impostas pelas evidências de destruição das condições de vida no planeta em conseqüência de uma visão reducionista que privilegia o lucro financeiro, a curto prazo e para um grupo privilegiado, não levando em consideração a qualidade de vida da população em geral, especialmente das gerações futuras. Embora tal conceito tenha se ampliado no decorrer das décadas, pode ser entendido, de forma simples como  “o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades. Significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais”   (Relatório Brundtland, elaborado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) . A proposta é a busca de um “ ponto de equilíbrio entre o crescimento econômico, equidade social e a proteção do ambiente”.  Como as crenças religiosas interferem diretamente no comportamento dos indivíduos, como discutiu exaustivamente o sociólogo alemão Max Weber, é importante verificar as implicações do pensamento cristão para essa temática de extrema relevância. É inegável a influência histórica do cristianismo na construção sócio-política do mundo ocidental e, especificamente, do Brasil. Tratando-se de um tema tão atual, encontrariam os cristãos base bíblica para a sua discussão? Considerando a amplitude do próprio termo “cristianismo” que abriga diversas vertentes, com diferentes dogmas, atenho-me, nesta abordagem, ao cristianismo da vertente  herdeira da Reforma Protestante do Século XVI, especificamente a calvinista, que tem a Bíblia, como única regra de fé e de prática e que, segundo os seus documentos oficiais, procuram pautar as suas ações no que o seu livro sagrado ensina. Como esses cristãos lidam com o problema do desenvolvimento sustentável? Como a sua visão de mundo interfere nessa questão? Verifiquemos princípios bíblicos que nos fornecem elementos para esta compreensão, por ser o texto bíblico a fonte primária para a elaboração da ética cristã reformada. É preciso lembrar que o tema “desenvolvimento sustentável” é amplo e diversas as propostas dele decorrentes. Trato aqui apenas dos seus princípios gerais.
Logo nos primeiros capítulos, do primeiro livro da Bíblia, o cristianismo reformado aponta um princípio que dá sentido à proposta do desenvolvimento sustentável: Deus criou o homem à sua imagem e à sua semelhança e o deu domínio sobre toda a sua criação. Animais de todas as espécies, peixes, árvores com seus frutos, ervas, todos os elementos, estariam sob o domínio do homem e lhe serviriam como mantimento (Gênesis capítulo 1, versículos 26 a 31). O homem, sendo uma criatura especial de Deus, sua imagem e semelhança, recebeu o privilégio de administrar a natureza, obra da criação divina. Uma inferência natural aqui é a de que todo administrador, mordomo, tem o dever de prestar contas dos seus atos administrativos àquele que lhe delegou tal função. Eis aqui a razão pela qual o cristão, desta vertente, entende que todas as suas ações sobre a natureza devem seguir os padrões divinos, visando a sua glória. Afinal “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém. O mundo e os que nele habitam” (Salmo 24, versículo 1). A administração responsável dos recursos naturais impõe-se deste ponto de vista. O homem foi colocado no jardim “para o cultivar e guardar” (Gênesis capítulo 2, versículo 15). Levando a sério esse princípio, o homem não pode ser negligente para com o potencial da natureza que recebe para “cultivar”. É preciso explorá-la, desenvolvê-la, “produzir cultura”, desenvolver os seus talentos. A idéia de progresso é, portanto, compatível com a fé bíblica. Isto nas diversas esferas da ação humana. O comodismo, a preguiça, a inoperância, são pecaminosas por representarem desprezo para com a vocação divina de “dominar” e “cultivar” a natureza.  Por outro lado, o homem, esse administrador autorizado e comissionado por Deus, deve realizar o seu trabalho consciente da responsabilidade de “guardar” o que recebeu em condições de atender às necessidades de outros que virão. Esses recursos não pertencem a quem os explora. São de Deus para o bem estar das diversas gerações. Esse é o ideal divino para a ação humana sobre o mundo que lhe foi confiado.
            O protestantismo reformado, entende que a entrada do pecado no mundo, a “queda do homem”, é o fator que explica o distanciamento do comportamento humano dos ideais estabelecidos por Deus. O homem tornou-se egoísta, rebelde contra o Criador e, por isso, age como se fosse o dono do mundo, visando os seus próprios interesses. Até a visão dos seus interesses está prejudicada, pois considera apenas os resultados imediatos e acaba, de forma contraditória, prejudicando a si mesmo e aos outros, da sua geração e das gerações futuras. Se a “queda” é responsável por essa inversão de valores na administração dos recursos naturais dados por Deus ao homem para a sua sobrevivência feliz, a “redenção”, operada pelo Evangelho, motiva os cristãos, dedicados a Deus e à sua vontade, a promoverem o retorno aos ideais estabelecidos pelo Criador em sua palavra. O cristão deve ser engajado, portanto, dentre outras causas, à causa da preservação ambiental por meio de uma “reforma” da compreensão do que seja desenvolvimento e progresso. A idéia de “reforma” pressupõe que o desejo de explorar a natureza, transformando-a de forma a gerar desenvolvimento, melhores condições de vida, é algo bom, dado por Deus ao homem, mordomo dos recursos naturais. Refere-se  ao “mandato cultural”, o de trabalhar, transformar conscientemente a natureza para o seu próprio bem, para o bem do próximo e para a glória do Criador.  É preciso, entretanto, tendo em vista o pecado, corrigir essa visão deturpada da realidade, egoísta, destruidora, que promove, de forma contraditória, a destruição da vida. O protestantismo reformado segue aqui, a proposta agostiniana, também fundamentada na Bíblia, de se enfrentar a cidade dos homens, regida pelo egoísmo, pela violência nas suas diversas modalidades, pela corrupção, com os princípios transformadores da “cidade de Deus”. Esse é o dever cristão, mesmo sabendo que, só no contexto celestial tal transformação ocorrerá na sua plenitude, como afirma o apóstolo Pedro: “Nós, porém, aguardamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (Segunda Carta de Pedro, capítulo 3, versículo 13). Enquanto isso, como “sal da terra” e “luz do mundo” (Mateus capítulo 5, versículos 13 a 16), os cristãos, coerentes com a fé que professam, por meio da palavra profética, serão sempre resistentes aos diversos tipos de destruição da vida, sob pretexto de desenvolvimento econômico: contaminação das águas, destruição das matas nativas, dos animais, transformação de ervas, cana e cereais, criados para, de algum modo promover a vida, em entorpecentes que destroem a consciência e promovem diversos tipos de violências social: doméstica, do trânsito, dentre tantas outras, destruindo a saúde que também é dádiva de Deus. Esses fundamentos teológicos, doutrinários, de fé, motivam o posicionamento do indivíduo nos diversos contextos e experiências. Isso envolve também, é óbvio, o conflito pessoal em busca da coerência. Como afirma, em outro contexto, o educador Paulo Freire: “As qualidades ou virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Este esforço, o de diminuir a distância entre o discurso e a prática, é já uma dessas virtudes indispensáveis – a coerência”.
Essa perspectiva teológica contribui, portanto, para o atualíssimo debate referente à responsabilidade ambiental, por meio da educação realizada pela igreja e suas instituições, influenciando em ações de outros setores da sociedade, inclusive do Estado, que por meio de leis bem aplicadas, disciplinem, de forma efetiva, a utilização dos recursos naturais de forma sustentável e da política educacional formadora de mentalidades que considerem as dimensões do problema.


[1] Artigo publicado
[2] Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano de Belo Horizonte, Licenciado em Pedagogia pela UNIMONTES. Mestre em História pela UFMG, Doutor em História da Educação pela PUC-SP. Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil e Professor da UNIMONTES e da FUNORTE

 
Design by Wordpress Theme | Bloggerized by Free Blogger Templates | coupon codes